LONDRES — A Associação de Psiquiatras do Reino Unido (RCPsych) divulgou um posicionamento importante sobre o projeto de lei Terminally Ill Adults (End of Life) Bill, que tramita no Parlamento britânico e propõe legalizar o suicídio assistido para adultos com doenças terminais. Embora o colégio mantenha uma posição neutra quanto à ideia de autonomia individual para o fim da vida, ele manifesta preocupações quanto à forma como o projeto foi redigido e aos riscos de aplicação indevida.
A principal crítica da instituição é que o desejo de morrer pode, em muitos casos, estar ligado a fatores tratáveis, como depressão, dor mal controlada ou abandono social, e que o projeto atual não exige uma investigação profunda desses aspectos antes da autorização para o procedimento.
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Critérios de inclusão propostos pela lei
Segundo o texto atual do Terminally Ill Adults (End of Life) Bill, para que o pedido de morte assistida seja autorizado, a pessoa deve atender a todos os seguintes critérios:
Ter 18 anos ou mais;
Ser residente da Inglaterra ou do País de Gales e estar registrada com um médico de atenção primária há pelo menos 12 meses;
Estar clinicamente diagnosticada com uma doença terminal, com expectativa de vida inferior a seis meses;
Ter capacidade mental para tomar a decisão de forma voluntária, consciente e informada;
Fazer duas declarações independentes expressando o desejo de morrer, com pelo menos sete dias entre elas;
Ter o caso avaliado por dois médicos independentes, e, se houver dúvida quanto à capacidade, por um psiquiatra;
Após a aprovação médica, o caso passa por um painel de revisão, que pode incluir juiz, psiquiatra e assistente social;
Há um período de reflexão de 14 dias após a autorização antes da liberação da medicação letal;
A administração da medicação deve ser autônoma, ou seja, feita pela própria pessoa que solicitou.
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Avaliação holística: a ausência do que mais importa
O RCPsych chama a atenção para a ausência de uma exigência formal de avaliação holística, ou seja, de uma análise abrangente da situação do paciente, que leve em conta não apenas o diagnóstico médico, mas também aspectos psicossociais que possam estar influenciando o pedido de morrer.
“Estamos diante de um risco real de que pessoas escolham morrer não porque queiram realmente morrer, mas porque não receberam o cuidado que precisavam para viver com dignidade”, afirmou um dos porta-vozes do colégio. A preocupação é que sem uma investigação adequada, a autonomia se torne aparente, mas não autêntica.
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Uma discussão filosófica sobre a legislação da morte
O debate sobre o suicídio assistido também atravessa questões mais amplas sobre a relação entre burocracia e responsabilidade moral. Filósofos como Hannah Arendt alertaram que sistemas legais, quando operacionalizados sem reflexão ética, podem normalizar a violência como gesto administrativo. A preocupação é que uma prática como o suicídio assistido, ao se tornar procedimento, acabe dissociando-se de sua dimensão humana.
Isso não significa negar o direito de cada indivíduo ao controle sobre sua própria vida e morte, mas sim destacar que essa escolha exige condições reais de liberdade, cuidado, informação e suporte.
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O papel das fés e dos valores sociais
Instituições religiosas, como a Igreja Católica e a Igreja da Inglaterra, manifestaram oposição ao projeto, com base na convicção de que a vida tem valor intrínseco. Há receios de que a legalização da morte assistida possa criar uma cultura de descartabilidade, em que pessoas doentes ou idosas sintam-se indiretamente pressionadas a não continuar vivendo.
Entretanto, outras vozes religiosas e seculares defendem que a verdadeira compaixão pode incluir respeitar a decisão consciente de quem não deseja mais suportar o sofrimento, desde que garantidas condições de avaliação e livre escolha.
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Cuidado paliativo: uma condição para a liberdade real
Reportagens do The Times apontam que metade dos britânicos terminais ainda não recebe cuidados paliativos adequados. Legalizar a morte sem garantir primeiro o acesso ao cuidado ético e competente pode criar uma falsa escolha. Como questiona um médico entrevistado: “O sistema não consegue oferecer presença, mas oferece a morte?”
A autonomia, portanto, só é plena se nenhuma das opções for empurrada pela carência, pela solidão ou pela dor evitável.
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Conclusão: entre o direito de morrer e o dever de cuidar
O projeto de lei britânico recoloca em pauta uma das questões mais sensíveis da vida contemporânea: o quanto de liberdade, responsabilidade e empatia estamos dispostos a reconhecer no momento da morte.
Defender a autonomia não é o mesmo que banalizar a morte. Pelo contrário: é tratá-la com a seriedade e o respeito que só existem quando o Estado, a medicina e a sociedade oferecem condições verdadeiras para que essa escolha seja feita com consciência, nobreza e apoio.
Se o desejo de morrer é, muitas vezes, um grito por ajuda, que saibamos escutá-lo com a escuta que não impõe, não apressa, nem censura — mas acolhe e compreende.
Dr. Jales Clemente, Psiquiatra.